2 de março de 2020

A arte como fator de sobrevivência foi o tema do primeiro Papo de Boteco de 2020

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Por Milton Correia Júnior

Especialistas mostraram a relação que existe entre a obra dos escritores Primo Levi, Carolina Maria de Jesus, e também com a do pintor Van Gogh, que usaram a arte como válvula de escape em situações de confinamento e miséria.

A importância da arte como fator de sobrevivência em situações extremas e como válvula de escape à violência e à miséria foi o tema do primeiro Papo de Boteco de 2020, que aconteceu no dia 17 de fevereiro no restaurante Sujinho. Criado com o conceito de ser um happy-hour para a mente, o Papo de Boteco é uma realização da Galática Educação & Cultura, tendo sido lançado em março de 2019, com grande sucesso.

O encontro, denominado Diálogos Inusitados entre a Escravidão a Arte e o Holocausto, foi conduzido por Luciane Bonace Lopes Fernandes e Naia Veneranda. Luciane Bonace é pós – doutorada em Línguas Orientais, doutorada em Educação e mestre em Estética e História da Arte. Naia Veneranda é jornalista e mestranda em Estudos da Tradução.

O escritor judeu italiano Primo Levi e a escritora negra brasileira Carolina Maria de Jesus tinham algo em comum: precisavam da sua arte para sobreviver em situações extremas: ele, como prisioneiro num campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, e ela em condições de miséria, numa favela de São Paulo. Escrever, para eles, era uma válvula de escape e também o que lhes dava condições de lutar pela vida e sobreviver em condições tão adversas, com esperança em dias melhores.

 

Foco nos sonhos

Naia Veneranda traçou um paralelo entre as vidas do pintor Van Gogh e da escritora Carolina Maria de Jesus, destacando que os dois acreditavam no trabalho que faziam, sabiam que eram capazes, não desistiam, tinham sonhos e lutavam por eles.

Carolina, por exemplo, queria mudar para uma casa de alvenaria e Van Gogh queria coabitar com vários outros artistas numa casa amarela, numa espécie de confraria. Os dois conseguiram, em parte, realizar este sonho. Carolina se mudou para uma casa de alvenaria, mas não conseguiu se manter e Van Gogh mudou para a casa amarela, porém não conseguiu criar essa união de artistas.

Naia Veneranda esclarece que, em tudo o que faziam, dependiam de sua arte para continuar a viver. No caso de Carolina, a escrita era a própria arte. No caso de Van Gogh, essa arte era a pintura, mas na escrita – especialmente nas cartas enviadas ao irmão Theo – ele também se expressava e inclusive chegou a comparar a pintura com a escrita, dizendo que muitas vezes as pinceladas surgem como uma sucessão de palavras numa carta.

A categoria de escrita que eles praticavam também os aproxima: trata-se da escrita de si, termo cunhado pelo filósofo Michel Foucault e que abarca gêneros como cartas, diários, bilhetes, cartões postais, etc.

“Vale lembrar que Carolina não foi escrava, mas descendente direta de escravizados e o projeto político destinado aos negros recém-libertos era um projeto de extermínio, assim como os do Holocausto. Por isso, escravidão é um dos temas deste nosso encontro”, explicou Naia.

 

 

Primo Levi

Por sua vez, o escritor italiano Primo Levi conseguiu traduzir a sua experiência de prisioneiro em campo de concentração alemão numa obra literária consistente e elogiada pela crítica, inclusive pelo fato de ser única e particular.

A pesquisadora Luciane Bonace explicou que Primo Levi é o principal autor do Holocausto por ter feito uma análise científica e extremamente reflexiva da experiência concentracionária, dada a sua primeira formação como químico. A carreira de escritor veio depois e se desenvolve paralelamente à de químico.

Nesse cenário, as informações trazidas por ele em suas diversas obras – que têm como foco central Auschwitz – são um poderoso subsídio para melhor compreendermos a natureza humana e seu potencial construtivo e, principalmente, destrutivo.

A relação dos escritores Primo Levi e Carolina Maria de Jesus se estabelece porque há similaridades entre os aspectos humanos da experiência de ambos com a fome, frio e trabalho árduo, bem como em relação à injustiça e, principalmente, à desumanização. Também há semelhanças no modo como ambos utilizaram a arte, no caso a escrita, para superar os desafios vividos e tentar, de alguma forma, organizar o caos social.

Luciane Bonace fez uma comparação entre a desumanização das favelas – local onde vivia Carolina de Jesus e os campos de concentração. Nos campos, os presos perdiam sua individualidade e identidade, sendo tratados como números por jovens soldados alemães incultos e inexperientes, que se orgulhavam do que faziam.

Segundo Luciane, é importante salientar que o processo de desumanização sistematizado pelos nazistas durante a II Guerra e aplicado a judeus e outras minorias, também esteve e está presente na atual realidade socioeconômica brasileira por meio do descaso, da injustiça e da corrupção.

 

Relatos contundentes

Ambos os autores partem de uma situação extrema, uma experiência mediada pelo trauma que é viver no limite da existência humana e estar privado das necessidades mais básicas. Neste caso, a expressão através da arte passa a ser uma maneira de dar forma àquilo que os traumatizava.

Para Primo Levi, as necessidades básicas eram as de sair do campo de concentração, comer e contar para o mundo a sua experiência. Já a favelada Carolina sentia a necessidade de sair da favela, de se alimentar melhor e com fartura e de poder relatar sua experiência a outras pessoas.

Ela chegou a pensar em suicídio, mas encontrou forças em seu diário para sobreviver, com a esperança de que um dia todo o seu calvário seria conhecido. Primo Levi também acalentou a esperança de voltar para casa, pois sabia que a guerra um dia iria terminar.  E que quando isso acontecesse, iria fazer o seu relato. Esse é o grande ponto comum entre os dois.

“Primo Levi era formado em química, estudioso e letrado. Carolina era semianalfabeta mas, apesar do pouco estudo, mostra uma clareza objetiva muito grande; por sua vez, Primo Levy, abandona qualquer tipo de sentimentalismo e faz uma análise científica da sua experiência e aí está a grandeza do seu trabalho, ao separar a pessoa que foi aniquilada  em  um campo de concentração do cientista que atua sobre o objeto da sua pesquisa. Ou seja, um grande observador dos aspectos da natureza humana”, argumentou Luciane.