24 de março de 2020

Os efeitos do exílio na obra de duas escritoras no Papo de Boteco

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         As especialistas em literatura Ana Luiza Rocha do Vale e Mariana Holms conversaram sobre a obra de duas importantes autoras em língua alemã – Paula Ludwig e Herta Müller – e  como a vida em outros países influenciou a sua escrita.  

Artistas – como pintores e escritores – que vivem um determinado período de suas vidas em outros países, ou permanecem definitivamente em terras estrangeiras, apresentam o efeito desse deslocamento em suas obras. E esse efeito é ainda mais intenso quando resultante de  uma transferência involuntária ou compulsória, como no caso do exílio.
A presença e o efeito do exílio na obra de duas importantes escritoras em língua alemã foi o assunto em pauta  do segundo Papo de Boteco de 2020, que aconteceu no dia 9 de março, no bar e restaurante Sujinho. O encontro é uma realização da Galatica Educação & Cultura.
O tema foi Memórias em trânsito. As literaturas de Herta Müller e Paula Ludwig e esteve a cargo das especialistas em literatura Ana Luiza Rocha do Vale  (doutoranda em literatura comparada) e Mariana Holms (doutoranda e mestra em literatura alemã).
Pontos em comum
Pouco conhecidas no Brasil, Herta Müller e Paula Ludwig têm como ponto comum o fato de escreverem no idioma alemão e de terem se exilado em outros países. A ganhadora do Prêmio Nobel Herta Müller é romeno-alemã, tendo nascido em Nitchidorf, um vilarejo na Romênia cujos habitantes são pessoas de origem germânica.
Escreve quase sempre em alemão clássico, mesclando elementos de alemão suábio, romeno e russo, entre outros idiomas. Ela se exilou em Berlin, na Alemanha, durante a ditadura do presidente da  Romênia Nicolae Ceauşescu, cidade onde vive até hoje.
Por sua vez, a poeta austríaca-alemã Paula Ludwig exilou-se no Brasil, durante 12 anos, devido à ascensão do nazismo na Alemanha. Ambas incorporaram a experiência do exílio em sua obra, que tem pontos em comum: elas e seus personagens transitam entre países, idiomas, paisagens e, de certa forma, entre gêneros literários. Ambas lidam em alguma medida com o tema da guerra, do sofrimento, de algo que por vezes alguns teóricos da literatura tratam como indizível.
Memórias, viagens, deslocamento, exílio e pátria perpassam os textos de Paula Ludwig e Herta Müller não só do ponto de vista temático, mas também como  marcas na forma literária. Assim, há personagens deslocados, exilados, composições fragmentadas, palavras do português em poemas em alemão (no caso de Ludwig) ou do russo, do romeno e do alemão suábio em romances em alemão clássico (no caso de Müller).
Escrita iconográfica
Paula Ludwig nasceu na Áustria,  em 1900, onde demonstrou suas aptidões literárias desde a juventude, pois aos 16 anos já havia escrito cerca de 250 poemas. Com a sua avó aprendeu a arte de fazer flores prensadas em vidro e foi trabalhar como modelo e ajudante em um atelier de pintura, onde também desenvolveu o seu lado de pintora.
Com 19 anos, tendo já uma filha de dois anos, lança o seu primeiro livro de poesias. Mais tarde, em 1933,  residindo na cidade de Berlin, na Alemanha, lançou outros dois livros intitulados O Espelho Celestial e Ao Deus Negro. Embora não fosse judia, por não apoiar o nazismo passou um período dificil na Alemanha e França durante a segunda grande guerra. Em 1940 inicia um período de exílio no Brasil, tendo vivido a maior parte da sua estada entre nós na cidade de São Paulo (de 1943 a 1953).
A doutora e mestra em literatura alemã  Mariana Holms abriu a sua exposição lendo um poema de Paula Ludwig escrito num sítio em Santo Amaro. O poema, em língua alemã, mescla palavras em português, como jararaca, urubu e bambu. Em seguida, leu a tradução feita por ela na língua portuguesa, que surpreendeu os presentes pela força e pelo poder descritivo.
O poema, iconográfico, é como se fosse uma pintura do que Paula Ludwig via ao seu redor: as árvores, a terra vermelha e os animais. O interessante é que a poeta explica o significado dessas palavras em português que estão inseridas no poema: jararaca (a cobra perigosa), urubu (ave de penas lustrosas) e bambus (plantas em riste como baionetas). É como se houvesse uma mescla do expressionismo alemão com o barroco brasileiro.
Para concluir o seu trabalho sobre a vida e obra de Paula Ludwig, Mariana Holms pretende fazer uma peregrinação na Europa, visitando os lugares onde a escritora viveu. Seu intuito é pesquisar os documentos originais de Paula Ludwig, que estão guardados em universidades e bibliotecas.
Esse vasto material será utilizado como a base para um biografia dessa escritora em língua alemã, dona de uma obra importantíssima mas pouco conhecida entre nós. A vida de Paula Ludwig é tão fascinante que com certeza daria um ótimo roteiro de filme. Ela esteve na França num campo de refugiados e fez a travessia como peregrina nos Alpes, experiência que resultou no livro Sapatos Rotos.
Sem concessões
Mais conhecida no Brasil e no mundo, principalmente por ter ganho o Prêmio Nobel de Literatura de 2009, Herta Müller é uma escritora que não faz concessões, quer na forma como escreve, quer nos temas que aborda, posicionando-se contra o totalitarismo, seja de direita ou de esquerda.
Seu trabalho é sempre identificado como literatura de língua alemã, e muito raramente como literatura romena. No entanto, muitos de seus personagens, paisagens, referências históricas, geográficas e culturais estão situados na Romênia.
Embora escreva em alemão “clássico”, há várias influências do alemão suábio, o “alemão do vilarejo romeno”, em seus escritos. Além disso, ela aborda muito as diferenças de visão de mundo que podem ser percebidas ao observarmos as palavras por meio das quais latinos (como os romenos) e saxões (como os alemães e as minorias germânicas na Romênia) nomeiam as coisas.
Ana Luiza Rocha do Vale abriu sua exposição lendo trechos da obra de Herta Müller extraídos dos livros Atemschaukel (na tradução de Carola Saavedra) e Herztier (na tradução de Cláudia Abeling), que ilustram a questão das memórias em trânsito. A escritora, até o momento, tem 22 obras publicadas, das quais 10 traduzidas para o português. Do total, 9  estão disponíveis nas bibliotecas públicas de São Paulo.
Herta Müller é romeno-alemã, pois nasceu num vilarejo da Romênia, numa família de origem germânica. Por isso, foi alfabetizada e criada em alemão suábio. Aos 15 anos, foi morar na cidade de Timisoara, também na Romênia, e lá aprendeu romeno.
Quase todas as suas obras foram escritas em alemão padrão (o alemão falado na Alemanha, diferente do alemão suábio que ela aprendera no vilarejo), com exceção de um romance escrito em romeno. Todos os seus livros têm a Romênia como paisagem em algum trecho, ou personagens romenos ou romeno-alemães. Nas bibliotecas, é mais comum que ela seja incluída na seção de literatura em língua alemã do que na de literatura romena.
Efeitos do exílio
O deslocamento devido ao exílio na Alemanha está presente na obra de Herta Müller de várias maneiras, por meio de personagens deslocados ou em trânsito e inserções de elementos de outros idiomas no texto em alemão.
Herta Müller nasceu 53 anos depois que Paula Ludwig. No entanto, a obra das duas autoras tem pontos em comum: Ludwig faz uma poesia pictórica e Müller é bastante conhecida por seus ensaios, contos, novelas e colagens com palavras, mexendo com a linguagem visual. Há romances seus com textos fragmentados e fora de ordem. Um exemplo é o livro História D’Alma,  onde o leitor se perde num enredo com vai e volta. Há também uma mudança no estilo narrativo e cortes visuais.
Antes de deixar a Romênia definitivamente, a escritora esteve várias vezes na Alemanha, onde denunciava as perseguições políticas por parte do governo totalitarista daquele país, que tinha o ditador Ceauşescu no poder. Ela falava abertamente em entrevistas a jornais e televisão, mesmo sabendo que iria retornar à Romênia. Até que chega o momento em que se torna impossível continuar vivendo na Romênia e ela opta por morar definitivamente na Alemanha, em Berlim.
Quando aprendeu a falar o romeno, aos 15 anos, Herta Müller ampliou sua visão de mundo, pois o romeno é uma língua neo-latina com elementos eslavos. Esse novo vocabulário estará, depois, presente em seus livros de diversas maneiras.
Um exemplo é o de uma senhora húngara que não podia voltar para sua cidade, Pest. Ou seja, este personagem é o exemplo de outros que estão deslocados no país onde vivem, especialmente em territórios disputados. Esse tema, alias, é recorrente em sua obra. Müller consegue falar de temas difíceis ate de uma maneira poética, quando diz que uma mulher é do sul do país e dava para perceber na sua aparência e fisionomia “uma terra que continuava pobre”.
Paula Ludwig faz apostos, explicando ao leitor o significado das palavras em português. Por sua vez, Herta Müller, em um livro cujo enredo se passa num campo de concentração ucraniano, descreve o que um alemão entenderia de algumas palavras em russo.
Papo de Boteco
O Papo de Boteco é uma criação da Galatica Educação & Cultura. O conceito é de um happy hour para a mente, com a proposta de por novas ideias na cabeça e provar que é possível ter uma conversa de conteúdo num ambiente descontraído, fora dos meios acadêmicos.

Realizado desde o início de 2019, o Papo de Boteco tem como local de reunião o tradicional Restaurante Sujinho. Com seu nome irreverente, o Sujinho segue com uma história  de mais de 50 anos. O clima descontraído, o ambiente aconchegante e uma comidinha simples, mas com sabor da casa da mamãe, reforçam suas tradições.