PL da Devastação: carta branca para a exploração predatória no Brasil – por Marina do MST

Publicado na Brasil de Fato 05/06/25
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Esvaziar atuação de órgãos de controle pode ser catastrófico para o país.
O mundo atravessa uma encruzilhada histórica, mas os senadores e deputados brasileiros parecem descolados da realidade. Enquanto movimentos sociais, organizações internacionais e até corporações discutem medidas para mitigar a crise climática, o Congresso corre na direção contrária e trabalha justamente para desmontar nossos mecanismos legais de proteção ambiental. Dentre os assustadores projetos retrógrados da bancada ruralista, que culminam em um verdadeiro “pacote de destruição”, o da vez é o chamado “PL da Devastação” (PL 2159/2021), aprovado pelo Senado no último mês.
O projeto, que flexibiliza drasticamente o licenciamento ambiental, esvaziando a atuação de órgãos de controle para fortalecer o agronegócio, é um escárnio com as comunidades que veem seus direitos fundamentais ameaçados e com todo o planeta à beira de um colapso. Para se compreender o tamanho do estrago, propõem-se mudanças como o autolicenciamento ambiental, que consistiria em permitir que as próprias empresas monitorem suas emissões e impactos.
Uma espécie de “raposa cuidando do galinheiro”. Quem há décadas lucra com a exploração predatória da natureza, sem a devida fiscalização, agora receberia carta branca para agir sem freios.
Junto a isso, tenta-se condicionar o reconhecimento fundiário apenas às terras com título formal, condenando ao limbo jurídico boa parte dos territórios indígenas, quilombolas e de pequenos agricultores. O projeto também ameaça estas áreas ao permitir que empreendimentos vizinhos realizem obras sem consulta prévia às comunidades afetadas, desrespeitando convenções internacionais (como a OIT 169). Para o Congresso brasileiro, legislar não é proteger vidas, mas entregar direitos aos grandes lobbies que bancam campanhas eleitorais.
Até hoje, conseguimos enfrentar, por meio da legislação vigente, casos emblemáticos de agressão socioambiental. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) tem sido alvo de sucessivas multas e condenações pela poluição industrial em Volta Redonda, seja por contaminar a cidade com um “pó preto”, formado por micropartículas de ferro que causam desde irritações oculares até doenças respiratórias crônicas e câncer, ou pela “língua negra” no Rio Paraíba
do Sul, em 2010, quando mais de 18 milhões de litros de resíduos tóxicos foram despejados na principal fonte de água para mais de 12 milhões de cidadãos fluminenses.
Caso o “Pacote da Devastação” avance, o rigor no licenciamento e na fiscalização será substituído por autorizações ambientais frouxas, e a CSN poderá agir à vontade, sem a obrigação de prestar contas à sociedade. Em Santa Cruz, na Zona Oeste da capital, outro exemplo dramático: a usina siderúrgica Ternium Brasil (antiga CSA/TKCSA), que devastou a Baía de Sepetiba. Instalado em 2007, após ter sido barrado na Europa por seu alto potencial poluidor, o complexo industrial emite diariamente uma “chuva de prata”, composta por partículas finas de metais como benzeno, tolueno, dioxinas e furanos.
Moradores relatam sintomas como coceiras, inflamações e alergias crônicas. Um relatório do Instituto Internacional Arayara estima que essas emissões agravaram quadros de asma em crianças, aumentaram partos prematuros e contribuíram para mais de mil mortes por doenças respiratórias e cardiovasculares entre 2010 e 2023, além de ter gerado um custo de mais de US$ 1,8 bilhão em despesas médicas e produtividade perdida. Embora a Ternium anuncie planos de investimento em projetos ambientais (R$ 650 milhões até 2030), o histórico de violações e a recusa da empresa em reconhecer plenamente os danos indicam um horizonte de poucas perspectivas de reparação.
Não bastasse a agressão industrial, o território fluminense enfrenta a expansão dos “Desertos Verdes”, as grandes monoculturas de cana-de-açúcar e eucalipto, destinadas à produção de açúcar, etanol, celulose e carvão vegetal para as siderúrgicas. Em Campos dos Goytacazes, essas commodities exauriram solos férteis e drenaram lençóis freáticos, resultando em secas prolongadas, erosão e perda de biodiversidade.
E ainda, comunidades quilombolas, indígenas e camponesas veem seus territórios criminosamente sobrepostos por fazendas que utilizam agrotóxicos de forma indiscriminada, causando problemas de saúde, insegurança alimentar e expulsão forçada.
Ainda em Campos, um crime socioambiental ocorre silenciosamente nas margens do Rio Paraíba do Sul: a proliferação de barragens de rejeitos de mineração (são cerca de 600 ao longo da bacia, que abastece 9 milhões de pessoas!), que ameaçam causar um colapso hídrico no estado. Investigações revelam que, em períodos de chuva intensa, a instabilidade dessas estruturas pode resultar em rompimentos catastróficos. Movimentos como o Baía Viva exigem vistorias emergenciais e a responsabilização de empresas e autoridades omissas. Sem a legislação vigente, perderemos os instrumentos para impedir este ataque permanente a nossos mananciais.
O que está em jogo vai além das áreas de proteção. Se esse retrocesso avançar sem resistência, perderemos saúde, dignidade e o futuro de gerações. Defender as leis ambientais é defender a vida e a dignidade. Não podemos assistir inertes ao desmonte das ferramentas que, mesmo com entraves, garantem algum tipo de controle sobre estes agentes que colocam o lucro acima da existência humana.
Este “PL da Devastação” é um crime contra as gerações futuras, uma traição contra a nação. Se acreditamos em um Brasil e um Rio de Janeiro mais justos e saudáveis, é urgente erguermos a voz. Compartilhe informações, pressione parlamentares para recuarem neste plano absurdo e, sobretudo, participe das mobilizações populares que tomam as ruas contra este Projeto de Lei.
*Marina do MST (PT) é deputada estadual do Rio de Janeiro, preside a Comissão de Segurança Alimentar da Alerj.
Editado por: Clívia Mesquita